André Piñero é professor por formação, poeta por tentativa e inúmeras outras ocupações por sobrevivência. Teve um poema publicado na Coletânea de Poesias Prêmio Sesc de Literatura Carlos Drummond de Andrade, Edição 2018, do Sesc do Distrito Federal. Lançou seu primeiro livro, Copo americano, pela Editora Urutau em 2021. Até então, a única coisa mais próxima de literatura que escreveu além destes poemas foram boletins de ocorrência policial quando trabalhou em uma delegacia de periferia. Nasceu em 1987 em Belém do Pará. Atualmente reside na capital do Amazonas, Manaus.
ralo
os esgotos que fogem das estações de tratamento
escorrem pelas goteiras de meu conjugado
o rio tem medo de desaguar
o país está em chamas
mas as centrais de ar trabalham incansavelmente
para disfarçar o calor
alguns têm o ventilador arno e as liquidações
em todo o setor de frios do supermercado
e eu tenho a umidade das notícias
eu tenho os mesmos canais
uma música antiga diz que
o novo sempre vem
mas eu tenho certeza que isso não envelheceu
muito bem
os velhinhos nas portas de suas casas
na verdade nunca
tentaram vencer a sujeira das ruas
eu tento furar a greve de ônibus
para encontrar minha dignidade
eu tento não chorar no banco de passageiro
de um motorista de aplicativo
ele se alimenta de balas e esperança
e me oferece desculpas que não sejam tentar
o olhar impiedoso dos caixas eletrônicos
e você
a verdade nas filas de prioridade
e você
a mensagem não escrita
e você
e o país
parece que vai haver uma guerra
o hino nacional mais alto que a música pop
bandeiras mastercard
e velhinhos armados finalmente
mas não é de bom tom
combinar verde
amarelo
e sangue
e nem se esconder no trabalho
afinal meu chefe disse que as coisas
vão melhorar a partir de agora
uma grande onda invadiu a cidade
mas ninguém olhou pela janela
pra confirmar se era rio
ou goteira
e assim os bairros mais pobres
foram dizimados ou convertidos
em investimentos
enquanto trabalho
e no caminho de casa
aprendo a ignorar a previsão do tempo
porque ele nunca passa
e nunca chove por aqui
apenas inunda
e pedir a proteção do cadeado do portão
e da boca aberta no noticiário
que também tentam
descansar
no lugar do motorista
uma palavra
nada
para o país
pessoa número 68
não chega a ser um problema
que a internet seja a única forma
de viver pra sempre
mas eu apaguei todas as nossas conversas
porque eu sou descuidado
minhas mãos se manifestam através
da tremedeira
e da falta de afeto
porque nós somos homens
e eu te deixei morrer
naquele dia eu te vi apaixonado
por outra mulher que não era a sua
mas eu não disse nada
eu gostei de te ver
sentindo alguma coisa que não lembrasse
desespero
porque a confidência dos homens
e o declínio da civilização
estão sempre avançando
e tem tudo a ver comigo
a culpa abandonada no tapete da porta de entrada
a vitória nos sites de relacionamento
depois dos 30
atropelamos algumas temporadas históricas
com teu carro alugado
mas você foi para uma trincheira no meio da Amazônia
e eu fui para uma livraria no centro da cidade
o download nos uniu para além
da falta de emprego
o teu carro deveria ter uma TV no banco detrás
porque sempre tinha alguém lá
mas isso nada tem a ver com solidão
tem a ver com falta de grana
e eu gostei de te ver
matando o tempo
com alguma arma que não fosse a sobrevivência
e também tem tudo a ver com
o momento que você estaciona esse mesmo carro
antes de entrar na sua casa
e ouve aquela música que poderia
derrubar tua masculinidade entre o grupo de amigos
Marina disse que
“você me tem fácil demais”
ignorando o momento em que
eu chorei
no único compartimento vazio da minha casa
em uma outra cidade cheia de ruas altas
ruas baixas
e que nada tinham a ver com montanha-russa
os outros cômodos você ajudou a encher
com histórias de brigas de rua
e cheiro de cerveja
tão lotados que fica difícil respirar
mas você sabe muito bem como é isso
porque você está morto e talvez fantasmas não
precisem respirar
ou trair suas esposas
fantasmas talvez não sejam machos
nem fêmeas
e provavelmente são felizes
porque o inferno já passou há muito tempo
antes mesmo de chegarmos no parque de diversões
perdermos os sinais
e habitarmos os acostamentos
taurina
para quem uma vez disse que o amor morreu
acordamos bem-dispostos
mesmo com as palavras de ontem penduradas
na beira da cama
mesmo com o sol rasgando
discretamente a cortina
o odor fala sobre o mundo inteiro que abandonamos
e a água da geladeira não esquecerá de nós
Foto de Luísa Machado.